A Pequena África e a saga dos pretos novos ─ Um roteiro pelo circuito cultural e arqueológico da celebração da herança africana

Escadaria do Centro Cultural. Imagem: Marcos Jesus

Caminhar nos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, desde a Praça Mauá até a Cidade Nova na região portuária do Rio de Janeiro, é fazer um passeio pela herança cultural africana na cidade. Região histórica e de forte presença africana, ficou conhecida como “Pequena África”, depois da proibição oficial, em 1831, do comércio de escravos, tornando a prática ilegal (não que o tráfico tenha sessado, importante dizer!), recebeu ex-escravizados libertos, mas que seguiram trabalhando na região entre o período de 1850 e 1920. A Pequena África recebeu libertos de diversas regiões, inclusive da Bahia, que ali se instalavam à procura de trabalho, edificando moradias, centros religiosos, e buscando o convívio social do dia a dia naquela comunidade. Apesar de rica, a negligência na preservação da herança africana no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, mostra o descaso de uma política pública que não preserva, tampouco divulga o processo da diáspora africana e a história da formação do povo brasileiro. Sendo assim, esses locais, assim como suas negras memórias, seguem ilustres desconhecidos, inclusive pela população local.

A proposta é sugerir um curto roteiro histórico e arqueológico da Pequena África, fácil de percorrer, mas cheio de informação e passado, como forma de valorização desse incrível patrimônio cultural.

Trajeto da Pequena África. Foto: Porto Maravilha

Partindo do centro, na Av. Rio Branco, pegue o VLT (serviço de bonde), com destino à estação Praia Formosa e salte na estação Cidade do Samba. Essa região central é rica em atrações, como a Praça XV de Novembro, o Real Gabinete Português de Leitura, o Museu de Belas Artes e o Museu do Amanhã na Praça Mauá, por exemplo, mas isso vai ser assunto para outra ocasião (o centro do Rio é diverso em atrações turísticas e culturais).

Em uma caminhada rápida de não mais que cinco minutos, chegará no Centro Cultural José Bonifácio, localizado na rua Pedro Ernesto, 80 (Bairro da Gamboa). O palacete foi construído por ordem de D Pedro II, inaugurado em 1877, e após sua restauração, foi reativado com o propósito de preservar a cultura afro-brasileira. Na instalação, funcionou o primeiro colégio público da América Latina que fazia parte das “escolas do imperador” e foi edificado para atender à população da região portuária. Destaque para a escadaria oval: toda de madeira nobre, com dois dragões esculpidos na base, e os painéis de azulejos pintados que mostram com mapas a evolução e as transformações da região. No prédio centenário em estilo renascentista, funciona uma biblioteca – são mais de 750 títulos, teatro, oficinas, cursos e exposições. Abre de terça a domingo, das 10:00 às 18:00 horas e a entrada é grátis.

Seguindo na mesma rua, a casa de número 32, abriga o IPN (Instituto de Pesquisas e Memórias Pretos Novos e o Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos), centro cultural e biblioteca de temática negra, que oferece cursos e oficinas para o resgate da cultura africana e preservação histórica. “Pretos Novos” ou “boçais” eram os escravizados que desembarcavam no porto do Rio de Janeiro, recém-chegados da África. O comércio de escravizados se dava nos arredores da Rua Primeiro de Março (então Rua Direita), até que em 1779, o Marquês do Lavradio mandou transferir todas as operações do mercado, o que só ocorre em 1811, ou seja, desembarque, venda e enterro dos escravizados africanos para a região do Valongo, implicando também na mudança do Cemitério dos Pretos Novos, que muitas vezes morriam logo ao desembarcar por não resistirem aos maus tratos da viagem, para a Rua Pedro Ernesto – Caminho da Gamboa, à época.

Cemitério dos Pretos Novos. Imagem: Marcos Jesus

“Estima-se, de forma conservadora, que a partir de 1580, começaram a chegar regularmente os primeiros grupos de africanos escravizados no Brasil. O processo a que estes homens e mulheres (em sua maioria, muito jovens) foram submetidos é de uma violência descomunal. Pelas ruas do bairro do Valongo, estima-se que tenham passado mais de um milhão de africanos capturados para servirem à escravidão.”

Museu Memorial Pretos Novos

Além de cemitério de escravizados e pelo número não oficial de pessoas enterradas ─ cerca de 20 a 30 mil e em muitos casos, os corpos eram jogados em valas e queimados ─ o maior das Américas, o espaço também se prestava para descarte de lixo, pertences dos Pretos Novos, restos de alimentos, como ossos de galinha e objetos de uso da população, traduzindo a pouca ou nenhuma dignidade o tratamento para com os africanos escravizados. Pesquisas em dados oficiais dão conta do sepultamento de 6000 pessoas, sendo 60% homens, 30% mulheres e 10% crianças e adolescentes. Fechado em 1831, quando da extinção oficial desse tipo de comércio no Brasil, construções foram erguidas sobre o cemitério encoberto por moradias ao longo dos anos e pelo acentuado desenvolvimento urbano próprio das grandes cidades, como é o caso do Rio de Janeiro.

Mas somente em 1996, durante obra de reforma em um imóvel na Rua Pedro Ernesto, 36 o cemitério foi descoberto pelo achado de ossos embaixo da casa quando os pedreiros retiravam terra de um determinado local no imóvel. A partir daí, as obras foram interrompidas, a prefeitura comunicada e várias pesquisas tiveram início com as escavações. Ossos, artefatos de ferro, instrumentos de uso diário, colares, contas de vidro, argolas, artefatos de barro, cachimbos, porcelanas e conchas foram encontrados durante as escavações. Vinte e oito ossadas foram resgatadas, predominantemente de jovens e adolescentes entre 3 e 10 anos. Mais outros 5563 fragmentos foram estudados, muitos destes ossos apresentando marcas de que foram queimados logo após a morte. O exame das arcadas dentárias encontradas, confirmou pesquisas históricas, pois o maior número de sepultados eram de origem Banto. O IPN funciona de terça a sexta feira, das 13:00 às 19:00 horas e sábados, das 11:00 às 14:00 horas e o Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, onde se pode ver as janelas arqueológicas com ossada encontrada no local, além de objetos e painéis descritivos. Disponíveis visitas gratuitas, mediadas e pagas, cada uma com seus critérios específicos. Para saber mais sobre as visitas e ainda, sobre cursos, o telefone é (21) 2516-7089.

Saindo do IPN, siga em frente até a Rua Sacadura Cabral. Na Rua Camerino vire à direita e a frente, estará a Praça dos Estivadores. Quando ocorre a transferência do mercado de escravizados da Praça XV para o Valongo, essa praça chamava-se Largo do Depósito e concentrava os armazéns dos controladores do negócio, os chamados “negociantes de grosso trato” e com a mudança, trapiches, manufaturas e armazéns foram introduzidos. Vale observar a arquitetura de muitos dos imóveis do local.

Ainda na Rua Camerino, um pouco mais a frente da Praça dos Estivadores, estará o Jardim Suspenso do Valongo. No início do século XX, a antiga Rua do Valongo, via que ligava o Cais do Valongo ao Largo de Depósito e onde se localizavam as “casas de engorda” – locais onde os africanos escravizados permaneciam para engordarem antes de serem vendidos, pois ao chegarem estavam muito debilitados por conta da longa e terrível travessia, lojas de venda de escravizados e de artigos relacionados à escravidão, sofreu obras de alargamento como parte do plano do prefeito Pereira Passos de remodelação da cidade, prevendo ainda, um parque projetado pelo arquiteto e paisagista Luis Reys, nos moldes dos parques franceses do século XIX, onde foram construídos o Jardim Suspenso do Valongo, a Casa da Guarda e o Mictório Público, inaugurado em 1906. No jardim estão expostas réplicas das estátuas que antes adornavam o Cais da Imperatriz, dos deuses Marte, Mercúrio, Ceres e Minerva. Na Casa da Guarda, como forma de preservação dos valores culturais da Pequena África, foi aberto o Centro Cultural Pequena África com peças arqueológicas, vasto acervo que revela costumes e aspectos do dia a dia dos habitantes do Morro da Conceição e ao longo da Rua do Valongo. A tentativa de “embelezar” a cidade imitando espaços europeus, ignorava a opressão e violência a qual fora submetia toda aquela região por conta do período escravocrata e embranquecer a história, não fez do passado inexistente. A visitação do Jardim Suspenso do Valongo é grátis.

Para mais informações sobre as visitas e horários no museu, o telefone de contato é o (21) 98750-9968, com Celina Rodrigues.

É no final da Rua Argemiro Bucão, no Morro da Conceição, bairro negro mais antigo continuamente habitado no Rio, que vamos encontrar a Pedra do Sal, berço do samba carioca, lugar popular entre turistas e locais, ainda hoje é ponto de encontro de sambistas da cidade, desde 2005, oficialmente reconhecida como quilombo e fonte rica de cultura afro brasileira. Para chegar até lá a partir do Jardim Suspenso do Valongo, é só seguir pela Rua Camerino e entrar à direita na Rua Sacadura Cabral. Caminhe até a Rua Argemiro Bucão, entre na rua à direita e alguns metros a frente, estará a Pedra do Sal. No século XVII a enorme pedra servia como ponto de embarque e desembarque de sal pelos africanos escravizados, por sua proximidade com o mar (nessa época, as águas do mar chegavam até suas margens) e seu nome deriva justamente da utilização para secar e vender sal, empregado na conservação da carne e fabricação de couro. No século XIX, os escravizados extraíram cortes de pedra utilizados nas construções de ruas, do porto do Rio de Janeiro e os degraus na pedra foram esculpidos a fim de facilitar o trabalho de subir sua superfície lisa. Reconhecidamente é o lugar onde nasce o samba urbano carioca e o carnaval, através do surgimento de antigos ranchos carnavalescos e sambistas populares – na segunda metade do século XIX, estivadores promoviam reuniões a fim de cantar e dançar. Passaram nas rodas de samba da Pedra do Sal, nomes como Pixinguinha, João da Baiana e Donga, grandes personagens da música no Brasil. As tradições de influência africana, seja na música, seja na religião com o Candomblé, seguem firmes e preservadas pela comunidade e seus moradores que mantém viva a memória cultural da Pedra do Sal, desde 1984 tombada pelo Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural). No local acontecem animadas rodas de samba quando se pode ouvir e cantar sambas de altíssima qualidade, ao ar livre e sem pagar nada! Cerveja, bebidas, comidinhas diversas, inclusive de boteco, são vendidos em restaurantes e bares instalados nos simpáticos casarios coloridos ladeados pela histórica ladeira de pedra.

ATENÇÃO: Em função das restrições quanto a pandemia de coronavírus, informe se sobra a programação antes de ir (link do site no final da matéria).

A vinda da família real para o Brasil e a construção do Cais do Valongo intensificaram sensivelmente o tráfico de africanos escravizados para o Brasil, em sua maioria trazidos do Congo e Angola. Estima-se que o Cais tenha sido a porta de entrada de 500 mil a 1 milhão de africanos ao longo dos anos, a partir de 1811 até 1831 quando foi oficialmente fechado. Em 1843, para receber a noiva de futuro imperador D. Pedro II, foi remodelado com os requintes à altura da Princesa Teresa Cristina Maria de Bourbon, recebendo então o nome de “Cais da Imperatriz”. A cidade passou por diversas e intensas transformações urbanísticas e em 1911, início do século XX foi aterrado, mas por conta das obras de reurbanização do Porto Maravilha, em 2011, ocorreu o resgate do sítio arqueológico de vestígios do antigo cais de pedra, agora transformado em monumento, preservado e aberto à visitação. Em 2017 foi reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. O Cais do Valongo fica na Avenida Barão de Tefé, 460, aberto 24 horas todos os dias.

DICA: se quiser começar o roteiro pelo Cais do Valongo e terminar no Centro CulturalJosé Bonifácio ou visitar apenas o Jardim Suspenso do Valongo, a Praça dos Estivadores (Largo do Depósito), a Pedra do Sal e o Cais do Valongo, pegue o VLT – L1 (pode ser na Av. Rio Branco) em direção à Praia Formosa e desça na estação Parada dos Navios, volte alguns metros em direção à Praça Mauá e vá pela Avenida Barão de Tefé até a Praça dos Estivadores iniciando o roteiro. O roteiro também pode ser feito todo á pé a partir da Praça Mauá e leva cerca de duas horas, incluindo as visitas e caminhada. A tarifa do VLT custa R$ 3,80 sendo preciso adquirir um cartão que será carregado com créditos para o pagamento das viagens, Nas estações do VLT encontra se máquinas de recarga e venda de cartões, com pagamento em dinheiro ou cartão de débito/crédito.

Saiba mais

Leia: O Crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz, editora Malê
https://pretosnovos.com.br
https://diariodoporto.com.br/guiamaravilha
https://rioonwatch.org.br/?p=20172
http://rodadesambadapedradosal.blogspot.com
http://portomaravilha.com.br/caisdovalongo
https://www.vltrio.com.br/#/

Texto: Marcos Jesus

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Artigo de

Redação Sampa